eu estive lutando por quem eu sou desde que me entendo por gente.
eu lutei por quem eu era desde criança, já que meu comportamento e meus gostos nunca eram como o padrão das crianças como eu. invés de brincar com meninas, eu gostava de brincar com meninos. invés de pedir bonecas de presente, eu gostava mais de videogames, de livros. invés de estar no meio de todas as crianças, a partir de um tempo eu passei a preferir ficar sozinha. e a solidão ao mesmo tempo que me abraçava de conforto rasgava-me o peito de dor. por que eu não sou como todo mundo e estou ali, no meio da multidão?
mas tudo bem, não são tantos desvios assim que alguém possa apresentar quando criança. eu cresci. e em algum ponto, quando você tem uns 15 anos, você pensa que a luta acabou. eu sou bem velha agora. eu posso ser quem eu quero e quem eu sou, e não há discussão quanto a isso.
claro que não acaba.
eu estive presa em uma gaiola destrancada por todos esses anos. aos 10, aos 12, aos 16 anos; a idade não importava. eu almejava muito mais do que eu era, do que eu tinha, do que eu podia ser. é claro que eu era proibida de ser eu. como pode, uma adolescente, ou não, uma pré-adolescente, ser tão rebelde? querer evitar contato com todo mundo? se trancar em seu quarto fazendo qualquer coisa que fosse, mas sempre sozinha? ter crises de choro toda vez que tinha de ir em algum lugar com os pais? era inaceitável. como você pode chorar tanto nessa multidão? aqui no meio de todo mundo? engole esse choro. ninguém tem nada a ver com seus problemas. eu não quero ter que explicar pra ninguém porque você chora tanto. como você pode não gostar de nenhuma dessas roupas? todas as meninas da sua idade usam isso. coloque um sutiã, da para ver que você está sem nessa roupa. você quer pintar o cabelo? mas é claro que não. todos vão olhar para você desse jeito.
como se não fosse o meu corpo, o meu cabelo, o meu choro, as minhas roupas, os meus problemas, a porra da minha personalidade, o meu próprio eu. imagino que tudo que meus pais pensassem era que sou egocêntrica e me achava melhor demais que as outras pessoas para ser como elas. mas a verdade é que elas me davam nojo. a falsidade dos adultos me dá nojo. o amor calculista dos adultos me dá nojo. os falsos sorrisos, aquele suportar a pessoa ao seu lado que você detesta e mesmo assim chama para jantar com você. nunca fez sentido.
mas eu nunca me achei melhor. eu sempre me achei diferente. era inegável. talvez eu não fosse tão diferente se eu morasse em uma cidade com um milhão de habitantes, mas a minha tinha apenas quarenta mil. quarenta mil era um número pequeno demais pra mim. era uma extensão de território pequena demais para eu manifestar, aos olhos dos outros, tamanha grandeza de rebeldia e personalidade.
eu me sinto grata por nunca ter desistido de lutar por quem eu sou. eu poderia ter desistido e me tornado como qualquer outra pessoa que conheci durante a vida, com quem estudei, com quem eu topava na rua. eu poderia ter desistido, na verdade, de ser qualquer pessoa. acompanhamento profissional era coisa de loucos. claro que eu pedia por aquilo para parecer ainda mais diferente. o que eu tinha era passageiro. era qualquer coisa, qualquer coisa que eles não entendiam. e como era exaustivo cortar o meu braço inteiro e todos fingirem que nada estava acontecendo comigo. tudo ficaria bem contanto que me arrastassem com eles para todos os lugares que eu não queria ir. aos prantos.
mas essa é apenas a primeira fase: os pais.
quando você completa 18 anos você tem alguma falsa sensação de que agora é de alguma forma livre ou algo assim. longe disso.
os pais podiam até agora, engolir o jeito com qual você se vestia, se pintava e se comportava
mas por que os outros também engoliriam?
numa cidade tão pequena sair de coturnos e meia calça é uma aberração aos olhos da maioria.
e é por isso que digo que estava em uma gaiola destrancada: eu não sou impedida de fazer nada, eu só tenho medo de abrir ela e não conseguir voar.
os diversos olhares das pessoas na rua apenas 1/3 das vezes eram divertidos, algo como "é. é isso ai mesmo que você tá vendo. eu to vestida assim. sim. meia calça. toda de preto. maquiagem pesada. sim, é isso mesmo, o meu cabelo é rosa. sim, as minhas pernas são inteiras fatiadas. aham, eu realmente não me pareço como alguém daqui".
os outros 2/3 eram completamente desconfortáveis, dolorosos e dão vontade de voltar pra casa o mais rapidamente possível.
e, sabe, eu não acho mesmo que sou tão exclusiva assim com isso tudo. eu acho que tem muito mais pessoas diferentes do que aparenta. mas talvez elas não tenham tido tanta força pra lutar para ser quem elas são quanto eu tive. infelizmente.
me vestir como todo mundo ás vezes não é nada mais que absolutamente confortável. mas ainda assim há algo cujo não posso me livrar: o meu corpo.
o meu corpo começou a se desenvolver muito cedo. e eu nunca pedi por isso. era motivo de vergonha. e ele não parou de se desenvolver. eu fui e continuo sendo bastante ingênua e não entendia os olhares das pessoas se virando de forma estranha pra mim. não entendia porque não podia me sentar de tal forma, usar tal roupa ou passar batom vermelho. era tudo tão estranho e algo em mim estava prestes a explodir a qualquer momento. eu fui tocada de forma nunca consentida e não consigo descrever o quanto isso atrapalhou o meu processo de abrir a gaiola e voar. porque agora parecia muito mais uma questão de segurança do que de liberdade de expressão. sim, eu achava que alguma coisa em minha personalidade era responsável por isso. foi assim que me senti
então não só eu estava em uma gaiola, mas era como se minhas asas agora fossem cortadas.
mas elas crescem. é claro.
foram travadas muitas batalhas com os outros, com meus pais, comigo mesma; para que eu fosse o máximo possível Eu. e acredito que hoje em dia houve progresso como nunca antes. eu vejo como se tivesse aberto a portinhola e até olhado lá fora, mas não sou capaz de dizer se já voei. ou talvez isso seja muito mais que apenas voar. talvez nem mesmo seja isso que eu almejo. talvez eu nunca vá saber. mas eu continuo procurando por mim mesma em toda palavra de um poema, em todo personagem de um filme, em toda música e todas as coisas que vivo diariamente. eu não acho que essa procura um dia vá acabar, mas ela vale todo a pena. talvez eu nunca possa voar, atingir o meu nível máximo, me conhecer por um todo, mas eu sempre posso me conhecer mais e mais do que antes. e se o futuro é o passado pois já é passado todas as palavras que acabei de escrever, eu já sou um pouco mais conhecedora de mim.
quem teria sido eu sem toda a luta por mim?